
Várias vezes na Sagrada Escritura Deus se mostra duro e até mesmo ríspido, a ponto de nos deixar meio escandalizados... Ele não é um Deus do nosso tamanho, não é um Deus que corresponde às nossas expectativas. Pelo contrário: ele as muda, subverte, transforma. Portanto, é necessário sempre que nos convertamos para acolher o modo de agir de Deus. É preciso compreender que mesmo a dureza do Senhor é um modo de nos educar e nos corrigir, fazendo-nos amadurecer e crescer no seu caminho. Ora, há uma perícope do evangelho que apresenta Jesus particularmente duro, ríspido mesmo... E, no entanto, é uma passagem de grande significado. Ei-la:
Jesus, partindo dali, retirou-se para a região de Tiro e de Sidônia. E eis que uma mulher cananeia, daquela região, veio gritando: "Senhor, filho de Davi, tem compaixão de mim: a minha filha está horrivelmente endemoninhada." Ele, porém, nada lhe respondeu. Então os seus discípulos se chegaram a ele e pediram-lhe: "Despede-a, porque vem gritando atrás de nós." Jesus respondeu: "Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel." Mas ela, aproximando-se, prostrou-se diante dele e pôs-se a rogar: "Senhor, socorre-me!" Ele tornou a responder: "Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos." Ela insistiu: "Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos!" Diante disso, Jesus lhe disse: "Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!" E a partir daquele momento sua filha ficou curada (Mt 15,21-28).
Jesus estava fora da Terra Santa, no sul do atual Líbano, em região fronteiriça com Israel, ao norte. Vez por outra ele saía do meio do seu povo para, sossegadamente, ensinar aos seus apóstolos e prepará-los para o momento decisivo da cruz. Quando o Senhor saía assim não queria que ninguém o reconhecesse. São Marcos diz claramente: “Não queria que ninguém soubesse” (Mc 7,24). É importante compreender que durante sua vida pública Jesus não aceitou jamais se dirigir aos pagãos. Somente após a ressurreição ele enviaria seus discípulos ao mundo inteiro. Agora, ele tinha vindo somente para as ovelhas da Casa de Israel. Este era o seu projeto e não o mudou: foi-lhe fiel! Jesus era bom, mas não era bonzinho...
É nesta circunstância que se dá o encontro entre ele e a mulher pagã: por algum motivo, ela o reconheceu e veio atrás dele pedindo em alta voz: “Senhor, filho de Davi, tem compaixão de mim!” É o grito perseverante e angustiado de uma mãe em favor de sua filhinha... É surpreendente a atitude de Jesus ante a súplica da mulher: “Ele, porém, nada lhe respondeu”. Jesus está decidido a não ceder no seu propósito de dirigir-se somente à Casa de Israel. Seus milagres não tinham como finalidade resolver os problemas das pessoas, mas eram uma manifestação do Reino de Deus. Como aqueles pagãos jamais compreenderiam a mensagem do Reino, também não teria sentido algum realizar milagres ali. Note-se que Jesus não é bonzinho e que sua misericórdia nada tem a ver com um “bom-mocismo” tão em moda hoje na Igreja! E, no entanto, a mulher o reconhece como “Filho de Davi”...
Ela insiste em pedir, insiste em seguir o grupo de Jesus com os Doze. Não teme ser inconveniente, não teme o “não” como resposta... “Tem piedade de mim” – é tudo quanto ela suplica, é a súplica angustiada de uma mãe... “Então os seus discípulos se chegaram a ele e pediram-lhe: ‘Despede-a, porque vem gritando atrás de nós’. Jesus respondeu: ‘Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel’’’. A mulher escuta o diálogo entre Jesus e os discípulos e, corajosamente, mete-se no meio, cheia de humildade: aproveita que estão parados, conversando, e aproxima-se, prostra-se e suplica: "Senhor, socorre-me!" É surpreendente, mas Jesus continua inflexível: não quer ajudar àquela estrangeira: ele veio para os filhos de Israel! Por isso, com dura franqueza, diz à mulher: "Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos". Mais que dura, a resposta é ofensiva! “Cães” era o modo como os judeus mais nacionalistas e piedosos tratavam os pagãos: os cães pagãos! Jesus claramente refere-se à mulher desse modo! Deseja testá-la, prová-la, provocá-la... Mas, essa mulher vai vencer o Senhor... Sinceramente, ante a teimosia dessa pagã Jesus não tem a menor chance! “Ela insistiu: ‘Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos!’” Com toda a humildade, de modo surpreendente, a mulher não somente não se ofende com a dureza de Jesus, mas retoma em seu favor a palavra ofensiva que Jesus usou! E mais, pegando Jesus pela palavra, suplica novamente a graça, o favor que está pedindo. E Jesus, finalmente, se rende: “Diante disso, Jesus lhe disse: ‘Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!’ E a partir daquele momento sua filha ficou curada”.
Deste encontro podemos aprender com o modo de confiar, de esperar e, sobretudo, de suplicar dessa pagã! Nela há todas as características da verdadeira oração: a confiança no poder do Senhor, a insistência, a humildade de quem tem a consciência que não tem direito a nada, pois tudo é graça, a pobreza de coração de quem não coloca condições e não dá prazos ao Senhor. Esta mulher tem o que poderíamos chamar de espírito de religião: a atitude de humilde respeito diante de Deus e do seu mistério. É este espírito de religião – esta virtude – que nos faz calar o coração diante do Senhor, sem a pretensão soberba de pedir-lhe explicações, de cobrar-lhe presunçosamente soluções... Sejamos francos: não compreendemos bem a atitude de Jesus. É dura, quase sem caridade! E aí? Vamos julgar o Senhor? Vamos censurá-lo? Vamos duvidar dele quando não compreendemos seu modo de agir no mundo e na nossa vida? É isto que a soberba humana faz; é isto que esta cananeia não faz; é isto que devemos aprender a não fazer!
Hoje em dia, em nome de um certo senso crítico e de uma certa maturidade, temos opinião sobre tudo, julgamos tudo, metemo-nos em tudo! Quantas reuniões, quantos livros escritos, quantas conferências e cursos para decidir o futuro da Igreja e da moral cristã, para avaliar e criticar... E quão pouco espírito de religião, quão pouca noção de que a Igreja não é nossa, mas do Senhor, que ser cristão é uma graça a ser acolhida e não um favor que fazemos a Deus... Quanta incapacidade de abrir-nos para o sagrado e de acolhê-lo ainda quando não caiba na nossa lógica. Hoje queremos tudo explicado, tudo lógico, claro, compatível com nossas opiniões e com nossa sensibilidade, como se Deus fosse para nós e não nós para Deus! E ai de Deus se não se explicar direitinho e não se dobrar ao nosso pensar e sentir... Mas, assim, jamais teremos a alegria de saborear a doçura do Deus verdadeiro. A Deus somente experimenta quem tem a coragem de prostrar-se diante dele com a humilde e pobre insistência dessa siro-fenícia, aceitando seus modos e tempos e, aceitando a sua vontade santa. Nem tudo do agir de Deus nos é compreensível, pois, como diz a Escritura, “as coisas escondidas pertencem ao Senhor nosso Deus; as coisas reveladas, porém, pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que ponhamos em prática todas as palavras desta Lei” (Dt 29,28). Em outras palavras: Deus não nos revela tudo, não nos dá satisfações do seu agir; e o que nos revela não é para satisfação da nossa curiosidade, mas para que ponhamos em prática sua vontade e nela encontremos a vida! É esta atitude de pobreza e disponibilidade, esta virtude de religião da cananeia que encanta Jesus e que nos desencanta tanto nos dias atuais: tudo tem que ter uma explicação, tudo tem que passar pelo crivo da nossa crítica, tudo tem que ser aprovado e justificado por nós... Mas, a vida assim não tem graça, não é aberta para a dimensão do mistério e da gratuidade e não estará nunca apta para acolher realmente a soberania de Deus que Jesus veio trazer com o anúncio do Reino. E aqui aparece, finalmente, o motivo pelo qual o Senhor fez o milagre mesmo para uma pagã e fora da Terra Santa: é que, se todos os seus milagres eram feitos em função do anúncio do Reino, pela sua virtude de religião, pela sua pobreza interior, a mulher era um exemplo vivo dos pobres e pequenos que acolhem o Reinado de Deus! E este Reinado não tem fronteiras: está no meio de nós, está dentro de todo aquele que não impõe regras nem condições a Deus nem lhe pede explicações...
Jesus, partindo dali, retirou-se para a região de Tiro e de Sidônia. E eis que uma mulher cananeia, daquela região, veio gritando: "Senhor, filho de Davi, tem compaixão de mim: a minha filha está horrivelmente endemoninhada." Ele, porém, nada lhe respondeu. Então os seus discípulos se chegaram a ele e pediram-lhe: "Despede-a, porque vem gritando atrás de nós." Jesus respondeu: "Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel." Mas ela, aproximando-se, prostrou-se diante dele e pôs-se a rogar: "Senhor, socorre-me!" Ele tornou a responder: "Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos." Ela insistiu: "Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos!" Diante disso, Jesus lhe disse: "Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!" E a partir daquele momento sua filha ficou curada (Mt 15,21-28).
Jesus estava fora da Terra Santa, no sul do atual Líbano, em região fronteiriça com Israel, ao norte. Vez por outra ele saía do meio do seu povo para, sossegadamente, ensinar aos seus apóstolos e prepará-los para o momento decisivo da cruz. Quando o Senhor saía assim não queria que ninguém o reconhecesse. São Marcos diz claramente: “Não queria que ninguém soubesse” (Mc 7,24). É importante compreender que durante sua vida pública Jesus não aceitou jamais se dirigir aos pagãos. Somente após a ressurreição ele enviaria seus discípulos ao mundo inteiro. Agora, ele tinha vindo somente para as ovelhas da Casa de Israel. Este era o seu projeto e não o mudou: foi-lhe fiel! Jesus era bom, mas não era bonzinho...
É nesta circunstância que se dá o encontro entre ele e a mulher pagã: por algum motivo, ela o reconheceu e veio atrás dele pedindo em alta voz: “Senhor, filho de Davi, tem compaixão de mim!” É o grito perseverante e angustiado de uma mãe em favor de sua filhinha... É surpreendente a atitude de Jesus ante a súplica da mulher: “Ele, porém, nada lhe respondeu”. Jesus está decidido a não ceder no seu propósito de dirigir-se somente à Casa de Israel. Seus milagres não tinham como finalidade resolver os problemas das pessoas, mas eram uma manifestação do Reino de Deus. Como aqueles pagãos jamais compreenderiam a mensagem do Reino, também não teria sentido algum realizar milagres ali. Note-se que Jesus não é bonzinho e que sua misericórdia nada tem a ver com um “bom-mocismo” tão em moda hoje na Igreja! E, no entanto, a mulher o reconhece como “Filho de Davi”...
Ela insiste em pedir, insiste em seguir o grupo de Jesus com os Doze. Não teme ser inconveniente, não teme o “não” como resposta... “Tem piedade de mim” – é tudo quanto ela suplica, é a súplica angustiada de uma mãe... “Então os seus discípulos se chegaram a ele e pediram-lhe: ‘Despede-a, porque vem gritando atrás de nós’. Jesus respondeu: ‘Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel’’’. A mulher escuta o diálogo entre Jesus e os discípulos e, corajosamente, mete-se no meio, cheia de humildade: aproveita que estão parados, conversando, e aproxima-se, prostra-se e suplica: "Senhor, socorre-me!" É surpreendente, mas Jesus continua inflexível: não quer ajudar àquela estrangeira: ele veio para os filhos de Israel! Por isso, com dura franqueza, diz à mulher: "Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos". Mais que dura, a resposta é ofensiva! “Cães” era o modo como os judeus mais nacionalistas e piedosos tratavam os pagãos: os cães pagãos! Jesus claramente refere-se à mulher desse modo! Deseja testá-la, prová-la, provocá-la... Mas, essa mulher vai vencer o Senhor... Sinceramente, ante a teimosia dessa pagã Jesus não tem a menor chance! “Ela insistiu: ‘Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos!’” Com toda a humildade, de modo surpreendente, a mulher não somente não se ofende com a dureza de Jesus, mas retoma em seu favor a palavra ofensiva que Jesus usou! E mais, pegando Jesus pela palavra, suplica novamente a graça, o favor que está pedindo. E Jesus, finalmente, se rende: “Diante disso, Jesus lhe disse: ‘Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!’ E a partir daquele momento sua filha ficou curada”.
Deste encontro podemos aprender com o modo de confiar, de esperar e, sobretudo, de suplicar dessa pagã! Nela há todas as características da verdadeira oração: a confiança no poder do Senhor, a insistência, a humildade de quem tem a consciência que não tem direito a nada, pois tudo é graça, a pobreza de coração de quem não coloca condições e não dá prazos ao Senhor. Esta mulher tem o que poderíamos chamar de espírito de religião: a atitude de humilde respeito diante de Deus e do seu mistério. É este espírito de religião – esta virtude – que nos faz calar o coração diante do Senhor, sem a pretensão soberba de pedir-lhe explicações, de cobrar-lhe presunçosamente soluções... Sejamos francos: não compreendemos bem a atitude de Jesus. É dura, quase sem caridade! E aí? Vamos julgar o Senhor? Vamos censurá-lo? Vamos duvidar dele quando não compreendemos seu modo de agir no mundo e na nossa vida? É isto que a soberba humana faz; é isto que esta cananeia não faz; é isto que devemos aprender a não fazer!
Hoje em dia, em nome de um certo senso crítico e de uma certa maturidade, temos opinião sobre tudo, julgamos tudo, metemo-nos em tudo! Quantas reuniões, quantos livros escritos, quantas conferências e cursos para decidir o futuro da Igreja e da moral cristã, para avaliar e criticar... E quão pouco espírito de religião, quão pouca noção de que a Igreja não é nossa, mas do Senhor, que ser cristão é uma graça a ser acolhida e não um favor que fazemos a Deus... Quanta incapacidade de abrir-nos para o sagrado e de acolhê-lo ainda quando não caiba na nossa lógica. Hoje queremos tudo explicado, tudo lógico, claro, compatível com nossas opiniões e com nossa sensibilidade, como se Deus fosse para nós e não nós para Deus! E ai de Deus se não se explicar direitinho e não se dobrar ao nosso pensar e sentir... Mas, assim, jamais teremos a alegria de saborear a doçura do Deus verdadeiro. A Deus somente experimenta quem tem a coragem de prostrar-se diante dele com a humilde e pobre insistência dessa siro-fenícia, aceitando seus modos e tempos e, aceitando a sua vontade santa. Nem tudo do agir de Deus nos é compreensível, pois, como diz a Escritura, “as coisas escondidas pertencem ao Senhor nosso Deus; as coisas reveladas, porém, pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que ponhamos em prática todas as palavras desta Lei” (Dt 29,28). Em outras palavras: Deus não nos revela tudo, não nos dá satisfações do seu agir; e o que nos revela não é para satisfação da nossa curiosidade, mas para que ponhamos em prática sua vontade e nela encontremos a vida! É esta atitude de pobreza e disponibilidade, esta virtude de religião da cananeia que encanta Jesus e que nos desencanta tanto nos dias atuais: tudo tem que ter uma explicação, tudo tem que passar pelo crivo da nossa crítica, tudo tem que ser aprovado e justificado por nós... Mas, a vida assim não tem graça, não é aberta para a dimensão do mistério e da gratuidade e não estará nunca apta para acolher realmente a soberania de Deus que Jesus veio trazer com o anúncio do Reino. E aqui aparece, finalmente, o motivo pelo qual o Senhor fez o milagre mesmo para uma pagã e fora da Terra Santa: é que, se todos os seus milagres eram feitos em função do anúncio do Reino, pela sua virtude de religião, pela sua pobreza interior, a mulher era um exemplo vivo dos pobres e pequenos que acolhem o Reinado de Deus! E este Reinado não tem fronteiras: está no meio de nós, está dentro de todo aquele que não impõe regras nem condições a Deus nem lhe pede explicações...
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